“Hoje eu sou uma pessoa que superou a situação de rua, que superou o alcoolismo e a drogadição. Há mais de 12 anos, eu sou fruto de políticas públicas que aconteceram em cada etapa da minha vida e da recuperação, adequadas para cada momento. Tudo foi se dando de forma lenta. Quando vi, eu não mais precisava de álcool, nem de drogas e estava inserido na sociedade, nos espaços de controle social. Além dessas políticas públicas combinadas, pude contar com trabalhadores comprometidos, com uma escuta qualificada, que me valorizavam e que me faziam sentir gente, sentir importante.” Essa fala é do ex-morador de rua Nilson Lira Lopes, fundador do Coletivo Estadual de Lutas da População em Situação de Rua do RS, sobre a importância da assistência a essa população na recuperação da sua dignidade e cidadania.
Lopes integrou o grupo de trabalho criado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), por meio do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos e da Proteção aos Vulneráveis (CAODH), visando à elaboração de questionário enviado a todos os municípios, para um levantamento sobre os quantitativos da população em situação de rua no Estado e sobre a implementação das políticas públicas para essa população, em cumprimento à liminar deferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 976. O objetivo do projeto do MPRS, intitulado “Rua Cidadã”, no âmbito do qual está o questionário, também foi permitir que os promotores de Justiça em cada comarca possam ter acesso a essa realidade no seu território de atuação.
“O levantamento verificou que, de toda a população em situação de rua no Estado, nem 15% conta com um serviço de acolhimento institucional, nem mesmo albergues para pernoitar. Além disso, não há prestação sistematizada do direito à alimentação na maioria dos municípios”, ressalta o coordenador do CAODH, Leonardo Menin. Ele explica que, com os dados em mãos, os promotores de Justiça conseguirão identificar, por exemplo, as violações de direitos nas suas cidades, quais serviços de assistência social e de saúde estão disponíveis para essas pessoas.
O diagnóstico é resultado do compilado de dados obtidos por meio de um formulário eletrônico distribuído pelo MPRS, com o apoio do governo do Estado, da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS) e movimentos sociais, para todos os municípios do Estado. “Cumprindo uma decisão do STF, nós verificamos quantas pessoas em situação de rua existem em cada território, quais são os serviços de acolhimento institucional existentes nos municípios e a capacidade de alimentação dessas pessoas. Para além disso, buscamos todos os dados relativos à implementação das políticas de Saúde e Assistência Social, dos equipamentos públicos de serviços a esse público, como, por exemplo, se o município tem Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), serviço de abordagem social e consultório na rua”, afirma Menin.
“Os questionamentos foram respondidos antes das enchentes de maio deste ano. Com a calamidade humanitária e ambiental que assolou o Estado, esses números tendem a aumentar. Então, especialmente nesse momento, termos serviços públicos estruturados e Promotorias de Justiça aparelhadas com dados relativos a esses serviços públicos e essas populações pode auxiliar enormemente na superação da situação de rua, inclusive das pessoas que vierem a enfrentar essa situação em razão da calamidade”, destaca, por fim, Leonardo Menin.
DADOS SOBRE MORADORES DE RUA NO RS
Conforme o diagnóstico, feito a partir das respostas de 76,65% dos municípios gaúchos, 14.829 pessoas adultas vivem em situação de rua, número que pode ser maior, já que três cidades de médio porte (Esteio, Parobé e Tramandaí) e uma de grande porte (Viamão), não responderam ao questionário.
Os maiores números se encontram em Capão da Canoa (668), Gravataí (799), Canoas (1.311), Caxias do Sul (1.497), Porto Alegre (2.371) e Pelotas (3.937). “A maioria das abstenções se deu nos municípios de pequeno porte. Assim, os números alcançados refletem a realidade e servem de referência para identificação das fragilidades das políticas públicas para a população em situação de rua”, salienta Leonardo Menin.
Referente a crianças e adolescentes, o diagnóstico indica que 365 estão em situação de rua, sendo que o maior volume está em Porto Alegre. Ainda, o levantamento apontou que 131 famílias vivem nas ruas, a maioria delas em Porto Alegre (28), Santa Maria (25), Bento Gonçalves (22) e Pelotas (10).
De todas essas pessoas, 34,63% (5.136) foram encontradas de modo sistemático na rua e 35,21% (5.222) são itinerantes. A concentração maior está na Região Metropolitana de Porto Alegre. Dos municípios que enviaram as respostas, 286 (que corresponde a 75,06%) informaram não ter nenhuma pessoa em situação de rua.
Com relação ao acesso à alimentação, direito fundamental previsto na Constituição, 81,82% das cidades que têm pessoas em situação de rua ofertam o serviço. Desses, em 49,38% (40) a oferta se dá por meio de organizações da sociedade civil de forma sistemática e em 34,56% (28) assistemática, o que revela a insuficiência da oferta por parte do poder público. Conforme Menin, um mesmo município pode ter informado mais de uma opção. Ainda com relação à segurança alimentar, 48,95% informaram insuficiência.
Dentro dos serviços da alta complexidade de assistência social para atendimento à população em situação de rua nos municípios respondentes, 60,18% (65) não dispõem de abrigo, albergue, casa de passagem ou república. Dos 30 municípios com mais de 50 pessoas em situação de rua: 46,66% (14) possuem albergue; 23,33% (7), abrigo; 20,0% (6), casa de passagem; 10% (3), república; e 20,0% (6), não dispõem de equipamentos da Alta Complexidade. São eles: Campo Bom, Capão da Canoa, Osório, Sapiranga, Torres, Vacaria.
Existem 2.185 vagas de serviços da alta complexidade, sendo 1 mil em Porto Alegre e o restante em outros 41 municípios. Das 14.829 pessoas em situação de rua, apenas 14,73% (2.185) são atendidas em equipamentos com proteção ao menos noturna (no caso de albergues).
Com relação a serviços da Média Complexidade e da Proteção Social Básica para atendimento à população em situação de rua nos municípios respondentes, 69,62% possuem Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), 51,11% têm Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), 5,92% Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP). Ainda, 22,22% contam com equipes para abordagem social e 5,18 % com equipes volantes no CRAS.
Sobre equipamentos da Política de Saúde nos municípios respondentes, 99,12% contam com Unidades Básicas de Saúde; 7,89% com consultórios de rua; 13,16% com ambulatórios de saúde mental; 35,96% contam com Centros de Atenção Psicossocial – álcool e drogas e 50% com outras modalidades de CAPS.
Apenas 18 cidades indicaram ter Plano Municipal para População em Situação de Rua ou estar em elaboração e sete contam com Comitê Intersetorial para Políticas para População em Situação de Rua.
Além de sinalizar ao Ministério Público, como órgão de fomento e fiscalização das políticas públicas, as zonas vulneráveis e municípios em situação crítica, instigando à atuação institucional na matéria, o relatório conclui que o direito social à alimentação adequada e segura não vem sendo ofertado para, pelo menos, a metade da população em situação de rua no RS. “O protagonismo do Poder Público no asseguramento do direito encontra-se em xeque”, destaca o relatório.
O documento aponta também gravíssimo déficit de serviços da Alta Complexidade da Assistência Social (abrigos), já que os informados cobrem apenas 14,72% dessa população, além de baixíssima oferta de Centro POP, de equipes de abordagem social e de Consultórios na Rua; e baixa especialização da Assistência Social e da Saúde no atendimento às pessoas em situação de rua.
É pontuada, por fim, a necessidade de elaboração de política ou plano municipal para a população em situação de rua que produza um desenho articulado entre a assistência social, saúde, segurança alimentar, trabalho e renda, profissionalização, esporte, cultura, lazer, entre outras áreas, além da constituição dos respectivos comitês intersetoriais.
Também conclui a necessidade de movimentos em direção aos municípios de Esteio, Parobé e Tramandaí, de médio porte, e Viamão, de grande porte, que não responderam ao questionário e, ao terem maior número de habitantes, possivelmente têm pessoas em situação de rua.